sábado, setembro 13, 2003

O BIBELOT, ESSE FLAGELO DECORATIVO - parte II (e última)

Boas noites aos discípulos do Templo da Barraquinha
Peço desculpa por me ter ausentado esta semana, mas estive na aldeia e a Revolução Electrónica ainda não chegou ao Ribatejo profundo. Mas aproveitei para me deliciar com a imprensa regional daquelas bandas e vou aproveitar para a desancar forte e feio na nossa próxima "Conversa em família".

Entre os mais sofisticados receptáculos de pó de uma típica sala de estar, corremos o risco concreto de encontrar aqueles tabuleiros de xadrez XPTO, com peças talhadas à mão e incrustrações de pedras preciosas. Claro está, livre-se alguém de pôr o dedo em cima desta obra de arte decorativa...:

"-Isto custou-me os olhos da cara!!! Se vos apanho a jogar, ficam seis anos de castigo sem ver o Batatoon!!" –vocifera a matriarca do clã. Dentro dos bibelots mais sofisticados, a Enciclopaedia Britannica, e as Obras Completas do Eça e do Camilo são "monstros sagrados" da literatura que povoam frequentemente a salinha de estar. São aliás tão sagrados que ninguém se atreve a cometer a blasfémia de lhes passar a mão no pêlo... A título de curiosidade, a minha afilhada mantém a sua biblioteca de sala religiosamente plastificada, aguardando com certeza um qualquer evento messiânico, dia esse em que os vai retirar do casulo e eventualmente, ler algum...

Estes objectos intocáveis fazem-me lembrar um outro tabu que sempre me fascinou: a porta principal da casa de aldeia. A habitação da aldeia tem sempre uma porta virada para a estrada, com um vaso florido e meia dúzia de sardinheiras no seu regaço. Essa porta nunca –ou quase nunca- é aberta. Há sempre uma portinhola camuflada com alguma vergonha nas traseiras –a "porta do cavalo"- que tem sempre uma daquelas coloridas redes anti-mosca. A porta principal –que ostenta orgulhosamente o número da habitação- é usada apenas em ocasiões mais cerimoniais. Esse místico portal dimensional só se abre aquando da visita do pároco local, do senhor Presidente da Junta e pouco mais. Fecha-se a porta da cripta e passado um minuto já o silêncio pesado volta a engolir o frontispício da habitação. E fecha o parêntesis.

O Nabuconodosor (1) desta "Babilónia do Barro Acetinado" é, sem dúvida, a "Recordação de (...)". Quem é que não tem em casa um pratito ou medalhita comemorativa de uma qualquer excursão a Badajoz, ou mesmo um exemplar vagamente fálico de louça comemorativa de um passeio às Caldas...? Uma sala lusitana que se preze tem que ter pelo menos um recuerdo alusivo ao santuário de Fátima ou do Bom Jesus de Braga. Vemos aqui aplicado um raciocínio geométrico do tipo "quem não é do Benfica não é bom chefe de família", aplicado à especificidade da posse de louça regionalista.

Mas de onde vem e para onde vai esse autêntico combustível alimentador das quermesses de qualquer festinha da terra, o bibelot?
A origem primeira (e última...) desta maleita decorativa é, incontornavelmente, o Império do Meio (2). O "Made in China" é mais vulgar entre a bonecada de barro que a exploração de mão-de-obra infantil nas novelas da TVI... Toda a gente sabe –e só não vê quem não quer- que se está perante uma espécie de "mito do eterno retorno" (desculpa lá a blasfémia, ó amigo Mircea).
Passo a explicar: a malta compra a bela rifa na barraquinha da especialidade, certo? Sai-nos um daqueles dálmatas de louça relezita (giríssimos...) com que algumas almas penadas insistem montar guarda na sala de estar. "-Que bela trampa..." – cogita angustiadamente o infeliz contemplado. "-O que é que eu faço com este mono...?" –interroga-se o mesmo indivíduo. Posta de parte a possibilidade exposta pela senhora esposa do Neandertal (i.e., metê-lo no c...) só resta levar aquele emplastro barrento sarapintado para casa. Eis senão quando o ciclo se fecha e o mito das rifas ganha pergaminhos de eterno retorno: "-´Pera lá, para o ano já sei o que é que vou dar às senhoras da Comissão de Festas, quando passarem cá por casa a pedir qualquer coisinha. Ah, pois...!!"

Fico à espera da vossa boquinha reaccionária, aqui mesmo, no vosso Speaker´s Corner do Blogue do Fim do Mundo

(1) Vão ver à enciclopédia que têm na sala. Pelo menos, sempre lhe sacodem o pó...
(2) A pobre enciclopédia já deve estar aborrecida com o corropio...

Um beijinho para a dedicada amiga Margarida Rodrigues, fiel leitora e incansável promotora desta cubata literária, que nem tecto de colmo tem.

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Baú