ASSIM VÃO AS GLÓRIAS DO TUNING – Terceira, e última, parte
Boa noite aos ouvintes da Rádio Renascença e ao meu fiel auditório
Quem é que nunca ouviu falar da monumental concentração no Centro de Exposições (CNEMA) de Santarém? (1) As peregrinações à Meca do ramo (assim como outros ajuntamentos populares, para as bandas da margem sul) funcionam como factor de congregação dos tuners, proporcionando um fortalecimento dos laços comunitários e permitindo a troca de artefactos e experiências. O lencinho/bandeira da "América" que costuma revestir o encosto de cabeça encontra aqui uma verdadeira legião de zelotas, sendo que alguns "fiéis" exibem orgulhosamente um CD no pára-brisas (ou um gigantesco e racing autocolante). No entanto, entre as esferas mais elitistas essa predilecção pelo CD é já vista de soslaio, como se de coisa de bimbo se tratasse. Em terra de cegos...
Os rituais de acasalamento são particularmente complexos. Com vista a impressionar o sexo oposto, os varões pavoneiam orgulhosamente o boné-colorido-com-óculo-escuro-à-pendura, tipo caranguejo-eremita. O recurso a flashes de luz azul –escolha muito popular para iluminação do habitáculo- resulta num efeito atordoante sobre a dama, sendo que as baforadas de monóxido de carbono dão cabo do resto das defesas. Deslumbram igualmente com o ronco do seu poderoso escape de rendimento, ou com a pressão sonora debitada pelo seu sound system (2). As corridas de quadrigas à bimbo e os "picanços" no semáforo são meios privilegiados para destrinçar os machos dominantes. Os outros ficam com o joio. E já gozam.
Outro elemento potenciador da coesão do grupo reside nas manifestações de carácter musical. Os membros do grupo juntam as suas "montadas" em manada, partilhando com o meio envolvente as suas preferências musicais (3) Podem surgir nestas ocasiões reacções hostis ao fenómeno tuning, nomeadamente quando a assembleia de reúne numa área residencial depois das onze da noite. Este desagrado é geralmente consubstanciado em palavras de ordem do género "Calem-se com essa merda!!!" ou "Eu amanhã trabalho, cambada de gandulos!!!!"
Consoante a tribo a que pertencem, as preferências musicais dos entusiastas do tuning podem ser segmentadas geograficamente: o "kizomba" e o "kuduro" são mais populares nos subúrbios, enquanto que o bom velho "pimba" tem mais discípulos nos meios rurais. As pistas de carrinhos-de-choque são meios privilegiados de difusão dessa musiquinha de meia pataca. Bem, chamar música a esse "áudio-refugo" de meia tigela poderia ofender algumas virgens mais puristas e fazer o maestro António Vitorino de Almeida fazer uma roleta inteira na tumba. Ah...o distinto senhor ainda não morreu, pois é...Realmente, o velhote vende saúde e vitalidade. Tenho impressão que na altura em que fazia aqueles programas com a Barbie Guimarães, o nosso amigo maestro ainda a terá convidado a ir lá a casa ver a colecção de partituras...
Não obstante as diferenças no gosto, é possível encontrar um denominador comum: seja o que for, tem de se ouvir a dois quarteirões (4), sendo essa a fasquia mínima para se conseguir o respeito e admiração do grupo. Na verdade, qualquer tuner que se preze tem necessariamente que exibir um poderoso sound system, sob pena de ser o alvo de comentários jocosos no seio da comunidade. Faz todo o sentido ter no interior do veículo uma panóplia de tupperwares sofisticados (chamados woofers e subwoofers) susceptíveis de reunir uma manada de mais de mil watts, porque pode ser sempre preciso abrilhantar as festividades de um qualquer bailarico, caso falhe a luz ou coisa assim. À excepção desta vital função social, não encontro mais nenhuma explicação possível para esse prazer insondável de gramar com a musicalidade própria das obras do Metro do Porto pelo tímpano adentro, fritando o resto do cérebro onde, até ver, ainda se vai registando alguma actividade.
E pronto, portugueses e portuguesas, acho que é tudo por agora. Fico à espera das vossas reacções a esta provocação. Venham de lá esses bilhetes postais para o marco do correio do Hyde Park, santuário do escárnio e maldizer.
(1) Não convém confundir com as exposições de gado que se realizam sensivelmente no mesmo local, sob pena de gerar lamentáveis equívocos; para que o estimado leitor, não confunda as espécies, fica a seguinte mnemónica: as vacas são as que têm mais manchas, os bois têm os cornos maiores e os tuners são os que têm os carros rebaixados.
(2) Dito assim, em estrangeiro, resulta que nem faca quente na manteiga dos corações das pestanejantes damas
(3) Quer o meio envolvente queira, ou não...
(4) Segundo o disposto nos cânones da ITF (International Tuning Federation)
sexta-feira, agosto 29, 2003
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