sábado, janeiro 22, 2005

Dos ratos, da peste e da ciência moderna…

Tenho andado entretido com os livros que me ofereceram no Natal, fiéis companheiros na minha diária peregrinação Mem Martins-Entrecampos-Anjos-e-volta-pelo-mesmo-caminho. Todos eles "best seller", fábulas em volta de supostos segredos do Vaticano, conspirações, sociedades secretas e a vida sexual do Alexandre Frota*. Enfim, o trivial, não é verdade?
Pois bem, depois de despachar o "Código da Vinci" resolvi então passar ao segundo round: "Imprimatur - O Segredo do Papa". A coisa passa-se na Itália (ou projecto dela) de 1683, numa simpática estalagem onde anda tudo a morrer de peste, veneno, doenças venéreas, etc. Depois de soar o pretenso alarme da peste, a bófia local (os homens do bargello) tratou rapidamente de emparedar os pensioneiros até a coisa acalmar. Que é como quem diz, morram todos aí dentro, que não fazem falta nenhuma cá fora. E por cá ainda se queixam da prisão preventiva, vá-se lá saber...
Entre as pitorescas personagens da pensão, o diálogo que vou passar a citar tem lugar entre Cristofano (o médico de Siena) e o estalajadeiro-aprendiz, um jovem que tem o sonho de vir a ser gazeteiro e como bónus, comer desalmadamente Cloridia, a cortesã (ou a puta lá do sítio, se preferirem) que foi apanhada no meio da trama. Depois de avistarem uma miríade de ratos mortos esvaídos em sangue no chão, o médico exibe com doçura paternal toda a sua irrefutável sapiência nos seguintes termos:

"(...) - Meu pobre rapaz, os ratos são os primeiros empestados. Hipócrates recomendava que não se lhes tocasse e do mesmo parecer foram Aristóteles, Plínio e Avicena. O geógrafo Estrabão refere que, no período romano, era bem conhecido o funesto significado do aparecimento nas ruas de ratos doentes, antecipando uma epidemia, e recorda que em Itália e Espanha eram dados prémios a quem matasse o maior número. No Antigo Testamento, os Filisteus, atormentados por um ferocíssima pestilência que afligia as partes traseiras, fazendo sair pelo ânus os intestinos putrefactos, notaram que os campos e as aldeias tinham sido invadidos por ratos. Interrogaram, então, os adivinhos e os sacerdotes, que responderam que os ratos tinham devastado a terra e era necessário ofertar ao Deus de Israel, para lhe placar o desprezo, um ex-voto com o desenho de ânus e de ratos. O próprio Apolo, divindade que causava a peste, quando se sentia irada e que atirava quando se acalmava, era chamado na Grécia, Esminteu, ou seja, matador de ratos. E, com efeito, na Ilíada, é Apolo Esminteu quem trucida com a peste os Aqueus que sitiam Tróia. E também Esculápio, durante as epidemias de peste, era represntado com um rato morto a seus pés.
- Mas, então os ratos provocam a peste! - exclamei pensando horrorizado nos ratos mortos que tinha visto na noite anterior nos subterrâneos.
- Calma rapaz. Não foi isso que eu disse. Aquilo que te acabo de expôr são apenas convicções dos antigos. Felizmente, estamos em 1683 e a moderna ciência médica fez enormes progressos. A vil ratazana não provoca a peste, que pelo contrário...como já tive ocasião de te dizer, é causada pela corrupção dos humores naturais, e, primeiramente, pela ira do Senhor Deus.*"

E então, o que é que vos suscita esta pérola? Na próxima postada há mais um delicioso trecho de "Imprimatur - o Segredo do Papa". Com o meu ritmo de postagem, deve ser lá para a Páscoa, pouco menos...

* É mentira essa do livro do Frota: comprei-o beeeem depois do Natal.
**O negrito fui eu que fiz, e não o senhor que escreveu o livro.

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